Carne de vaca e beijos, não mais

Por Gerson Brasil


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Ana Cristina 08/12/2021 08:00 Artigos

Convidei Meire para jantarmos. Nada de especial, apenas retribuição ao corpo agastado pelas horas de trabalho, no hospital, à semelhança do corpo do operário, da prostituta, do farsante, destinado à produção e gratificações; honrarias e recompensas a robustecer a vaidade e o indispensável bolso. A produção é substantivo, não suporta distinções, nem antigas ou novas paletas de cores; quanto mais especializada, amplia o quadro da indiferença a um dístico de Gerente de Cyber Security, Especialista em Cloud e Analista de Business Intelligence, Dados e Automação. Não é como Müller, Miller, moleiro. O restaurante decente nos acolheu sem intimidade, mas também sem revistas. Na rua, bares, cafeterias, ou por um descuido, olhares distraídos, apreciam as coxas das mulheres em busca de adivinhações inúteis, mas de bom paladar.

Impecável, sem uma dobra na camisa e os punhos rígidos; boa receita para dobrar os sinos ou fazer descer o cutelo e a cabeça rolar tábua e meia, acompanhada da respiração da platéia, agora já voltada para seus afazeres. Era o garçom. Silencioso, à distância suficiente para ser notado, mas sem intimidade ou a denotação de serviçal.

Por acidente, enxaqueca ou esquecimento se houvesse um recuo ele estaria na mesma posição do seu par no retrato de Manet, “Almoço na Relva”. Só é visto dois cavalheiros vestidos elegantemente, moça no fundo a tomar banho e uma mulher nua no primeiro plano a olhar para o pintor e para o garçom, em busca de ser servida. Há uma cesta de pães e frutas dentro e fora da cesta, à espera.

Invisível, assim também estava o garçom que nos servia na distância impronunciável, mudo, calado, não se interessava pela nossa conversa, braços cruzados sobre o peito, segurando o cardápio.

Como não era festa e sim uma homenagem ao corpo procurei saber se o restaurante poderia nos oferecer algo que o apetite prontamente agradeceria; deixei de lado a gastronomia, e todo manual de sabores que guardo na memória com a ajuda do desejo. Com uma boa dicção e sem dislexia recomendou e elogiou o fricassé de frango e pata de vaca ao vinho. E então Meire, o que vamos comer, ou o que você vai comer, ou que prato escolherei? Escolha você, sorvete de coco ou de chocolate?

Estou pensando se beijo o moço dois andares acima, como se beija macaquinhos e outros animais dóceis, menos os felinos. Gatos detestam intimidade, por isso vivem embaixo das mesas, em cima de algum lugar e sempre com o rabo enrolado no corpo, como os gatos de Cortázar; “quando Alana e Osíris me olham não posso reclamar da menor dissimulação”.

E se o rapaz me beijasse na escada? Eu de saia e blusa de gola rolê. Não se beija mais, notou? Nem em filmes, claro, excetuando aqueles entrelaçamentos de línguas martelando a intenção de tornar a física insuficiente. Já se foram Burt Lancaster e Deborha Kerr, mas o beijo batizado com uma leve onda da praia ficou para sempre em “A um Passo da Eternidade”. No cinema, a platéia gritou, “chupa Caetano”, para homenagear os amantes. O beijo do marinheiro na enfermeira captado por Alfred Eisenstaedt, na Time Square, ao término da segunda Guerra Mundial, não mais.

O que você escolheu doutora? Pata de Vaca ao vinho. Tem um motivo especial? A curiosidade foi mais forte do aquele peixe com limão. Cozido com um pouco de vinho branco? Ou lembrou quando tatuava nas coxas a cola de matemática, e de graça oferecia sessão de cinema? Mas tinha de dobrar no estudo de português, se exaurir, porque a professora recorria às estrofes de “Os Lusíadas” e perguntava aos alunos onde estava o objeto indireto. Porque não valorizar a língua pátria e procurar na sala, onde está o sujeito na frase: “Vadinho, o primeiro marido de Dona Flor, morreu num domingo de carnaval”.

Não falava alto, não gritava, não reclamava do barulho, se vestia discretamente e discretamente distribuía notas vermelhas, escritas, solidamente, com caneta de tinta vermelha, e acrescentava a jovialidade: “vamos estudar, é uma virtude”. Doía e a insignificância acompanhava.

Mas graças à professora você aprendeu a ler, escrever, argumentar e se formou em direito com distinção. A multidão de inveja masculina, quieta, boca fechada, o orgulho enterrado numa alentada bola de chumbo, diante de oratória incomum, você sendo saudada com gracias pelo diretor da faculdade.  “Hace tiempo que no recuerdo ese placer”.

Cortei um pedaço da pata de vaca. A fome me espreitava. Os dentes seguiram o protocolo, e logo a decepção se instalou. A boca ficou aquosa, era como morder uma pêra já além do amadurecimento.

Meire, isto é carne ou fomos ludibriadas, ou a habilidade do cozinheiro excede a rotina dos dentes e o paladar intromissão indevida? Não sei o que dizer, nunca vi vaca de verdade, será que essa é hermafrodita?

Li certa vez que a carne de vaca cozida perde metade de seu peso. Um tratado sobre a “Fisiologia do Gosto”, de Brillant-Savarin; combinava intrigas, falsidades e gastronomia. Comparou os prazeres da cama com o gosto e disse que ambos agem com tirania e sucesso. Era juiz e materialista.

Quem sabe, o cozinheiro tenha sido aluno da professora de português e expandido o aprendizado para a culinária. Estamos revisitando Camões? “Mas que falo, humilde, baixo e rudo, de vós não conhecido nem sonhado?  Da boca dos pequenos sei, contudo, que o louvor sai às vezes acabado”.

Meire, obrigado pela informação, mas é tão útil, como uma faca na água. Talvez minha fome seja uma heresia, vamos comer queijo e beber vinho, Não há contra indicação. Até agora fora de decreto ou recomendação científica, oposta. As narrativas das incertezas trilham outros caminhos.

*Gerson Brasil – jornalista e escritor.

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