ARTIGO: Exorbitando o poder*

A cena exibida na semana passada, de uma idosa sendo jogada ao chão e depois algemada e levada presa por Guardas Municipais da cidade de Araraquara, interior de São Paulo, chocou parte da população brasileira. No mesmo período, em Maringá, no Paraná, um lavador de carros foi sufocado com uma gravata e depois algemado e levado preso. No interior de Minas Gerais, na cidade de Poços de Caldas, um padre, que celebrava uma missa online, teve o culto interrompido e ameaçado de ser preso.

Por desinformação, pânico ou mesmo arbítrios, prefeitos têm utilizado a pandemia do coronavírus para exercitar um pouco da tirania que trazem dentro de si. Exorbitam das ações de controle sanitário e extrapolam nas medidas. No caso de Maringá, o prefeito Ulisses Maia considerou a atitude da Guarda Municipal “inaceitável” e disse que iria apurar o caso. Mas em Araraquara, o prefeito Edinho Silva (Edinho do PT) postou um vídeo nas redes sociais, dirigido aos moradores, ainda mais ameaçador.

Na Bahia, diversas prefeituras resolveram adotar o “toque de recolher”, proibindo a circulação de quaisquer moradores entre às 20hs e 6h do dia seguinte. Em alguns casos, quando da emissão do decreto municipal, como em Itiúba e Conceição do Coité, sequer os dois municípios tinham registrado contaminação pelo coronavírus.

O termo “toque de recolher”, surgiu na Segunda Guerra Mundial, adotado na Inglaterra, em Londres, principalmente, e em países que lutavam contra o Nazismo, como forma de proteger a população, que deveria apagar as luzes à noite e evitar a circulação nas ruas, por causa dos bombardeios aéreos alemães. Os nazistas impuseram um toque de recolher primeiro na Polônia e mais tarde em toda a Europa, como forma de proibir que judeus e simpatizantes circulassem pelas ruas.

No pós-guerra, a prática foi adotada em algumas situações em que se configurava o “Estado de Guerra”, por  Israel contra civis palestinos nos territórios ocupados, durante a insurreição de 2005 nos subúrbios da França, em Beirute, no Líbano, em janeiro de 2006,em Paris, na França, em novembro de 2015 por razão dos ataques terroristas que a cidade sofreu no dia 13 de novembro. E em São José dos Campos, em São Paulo, imposto por traficantes e bandidos no dia 20 de agosto 2e 2015. No período do Regime Militar (1964-1985), o toque de recolher foi usado em 1966 pelo então presidente Humberto de Alencar Castelo Branco.

Toque de recolher é uma medida de restrição geral de circulação de pessoas em espaços e vias públicas, utilizada em situações excepcionais como estado de sítio e guerra. Diferente de quarentena, no atual momento da pandemia da Covid19, não se trata de uma ação de controle sanitário, que é adotada com base em evidências técnicas, e após análises sobre as informações estratégicas em saúde, que pode incluir restrição de uso de certos espaços públicos, sempre embasadas por autoridade sanitárias.

Ao adotarem tais medidas de restrições amplas, prefeitos ferem o Artigo 5º, XV, da Constituição Federal de 1988. O próprio ministro da Justiça, Sérgio Moro, ressalta que é preciso tomar cuidado com alguns exageros que estão sendo feitos em meio à ‘quarentena’. Em recente despacho, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Toffoli negou à Prefeitura de Umuarama, no Paraná, a possibilidade de estabelecer um toque de recolher na cidade como forma de prevenção à Covid-19. Toffoli disse que o decreto municipal teria que estar respaldado em recomendação técnica da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Na segunda Guerra Mundial, o toque de recolher tinha uma natureza técnica preventiva porque as luzes à noite eram indicadores para a ação dos bombardeiros alemães. Mesmo nas exceções, como ataques terroristas, ou mesmo em situações ditatoriais, há um fundamento técnico de segurança militar e de integridade física da sociedade. Como medida sanitária, contudo, o toque de recolher não se sustenta, porque ao se estabelecer determinados horários de restrições para a circulação de pessoas nas ruas, é como se dissesse que o vírus também tem preferência de horário (das 20 às 6h) e que nos demais horários ele não atua.

Só alimenta o sonho de poder de alguns.

*Adilson fonseca  é jornalista e escreve neste espaço sempre às quartas-feiras.