A coisa mais importante abre a matéria
Era o ano de 1969 e ingressei como repórter na Tribuna da Bahia, o novo jornal de Salvador que vinha com uma equipe de jovens liderada pelo competente e criativo jornalista Quintino de Carvalho, nova linguagem e impressão em off-set para tentar abalar a liderança de A Tarde. Começamos produzindo matérias para um jornal fantasma, […]
Era o ano de 1969 e ingressei como repórter na Tribuna da Bahia, o novo jornal de Salvador que vinha com uma equipe de jovens liderada pelo competente e criativo jornalista Quintino de Carvalho, nova linguagem e impressão em off-set para tentar abalar a liderança de A Tarde.
Começamos produzindo matérias para um jornal fantasma, pois a rotativa ainda não tinha chegado, então era um faz de conta de fazer jornal. Era curioso você ir entrevistar um secretário de Estado e o cara perguntava se o jornal já estava circulando, você explicava que era para o “número zero”, experimental, e o secretário dava a entrevista sem muita vontade. Como dar uma entrevista se sei que não vai sair publicada em lugar nenhum?
Mas chegou uma hora em que a Tribuna teve que dispensar quase todo mundo. Uma greve no Porto de Nova Iorque, que durou meses, impediu o embarque da máquina rotativa comprada pelo jornal. Foi aí que em agosto de 1969 fui para o Jornal da Bahia, onde trabalhei como repórter só um mês, pois a greve acabou, a rotativa chegou e me chamaram de volta.
Nesse curto tempo de Jornal da Bahia teve um caso insólito. Me mandaram entrevistar o humorista Ary Toledo, que veio dar um show em Salvador e estava hospedado no Hotel da Bahia. Ary estava bombando com a música “Comedor de Gilete (Pau-de-Arara)”, de Vinicius de Moraes e Carlos Lyra (veja letra abaixo), sobre o drama de um retirante do Ceará no Rio de Janeiro, obrigado a tudo para matar a fome, que dizia: “Tinha um compadre meu lá de Quixeramobim/ Que ganhou um dinheirão comendo gilete na praia de Copacabana”.
“Pode fazer uma entrevista bem longa, vou deixar uma página inteira pra você na edição de domingo”, disse o chefe de Reportagem. Fiz a entrevista, anotei tudo em mais de 20 ou 30 laudas. Cheguei à Redação, coloquei o bolo de laudas em cima da mesa, fui ao sanitário e depois tomar um cafezinho. Na volta, cadê minhas anotações? O cara do lixo passou aqui agora. Desci picado as escadas do jornal, cheguei lá na área do lixo e tinha uns cinco tonéis. Avistei o cara que tinha acabado de descarregar. “O lixo da Redação botei agora nesse tonel daí”. Meti as mãos no tonel e depois de muita luta consegui recuperar minhas laudas. A parte que estava manchada com café e tocos de sanduíche eu puxei pela memória. Recuperei tudo e saiu uma bonita página com Ary Toledo.
Na Tribuna da Bahia, onde fiquei cinco anos, fui repórter e Editor de Texto (chefe do Copy-Desk). No começo do jornal todos os repórteres tinham que trabalhar de paletó e gravata, mas aí estenderam a obrigatoriedade também a quem trabalhava internamente. Eu e os redatores também ficamos obrigados à gravata. Questionei os chefes, mas não teve jeito. Uma noite, retornando do sanitário escrevi: “Cagar de gravata/ Difícil bravata/ A ponta dela/ Na ponta da taca” e colei no mural. Meus versos causaram furor, foram retirados do mural, mas a gravata caiu uma semana depois.
Num dos jornais onde trabalhei havia um chefe baixinho, irascível e autoritário, desses que implicam com tudo, que era odiado por toda a Redação (aprendi que todo chefe que dá murro na mesa é incompetente). Uma noite, um repórter de outro jornal chegou na tribuna de imprensa do Estádio da Fonte Nova e perguntou “quem é fulano aí?”. Ele logo se apresentou e tomou o maior murro pelas ventas. “Mas como é que você bate num cara que você nem conhecia?” “Só de conhecer os casos dele fui juntando raiva”.
A nova rotativa da Tribuna da Bahia serviria, anos depois, para imprimir em cambraia de linho branco a mortalha do “Filhos da Pauta”, um bloco de Carnaval de jornalistas com manchetes arrasadoras: “ACM se filia ao PC do B” e “Salário mínimo aumenta 1.000%”. Os foliões paravam a gente na rua para ler as manchetes.
Botamos o bloco na avenida com dois ou três pequenos carros alegóricos exibindo mulheres de biquíni sambando. Só que os carros alegóricos eram tão baixos que quando o bloco, que não tinha corda de proteção, desceu a Ladeira de São Bento os foliões começaram a passar a mão na bunda das três dançarinas que, revoltadas, abandonaram a alegoria e desceram dos carros mandando a gente enfiar naquele lugar o magro cachê.
São muitas histórias. Conta-se que teve um foca (jornalista estagiário) de um jornal local a quem o reitor da UFBA deu uma entrevista de mais de uma hora. Na saída, já na porta do gabinete, ele pediu ao reitor: “Agora eu queria que o senhor dissesse uma coisa bem importante pra eu poder abrir minha matéria”.
(Letra de “O Comedor de Gilete” (Pau-de-Arara), de Vinicius de Moraes e Carlos Lyra, música da década de 60, integrante do musical “Pobre Menina Rica”, que foi sucesso na voz do comediante Ary Toledo, mas que é muito mais trágica do que humorística. Veja:
“(Cantado) Eu um dia cansado que tava da fome que eu tinha
Eu não tinha nada que fome que eu tinha
Que seca danada no meu Ceará
Eu peguei e juntei um restinho
De coisas que eu tinha
Duas calças velha e uma violinha
E num pau-de-arara toquei para cá
E de noite eu ficava na praia de Copacabana
Zanzando na praia de Copacabana
Cantando o xaxado pras moças olhar
Virgem Santa! Que a fome era tanta
Que nem voz eu tinha
Meu Deus quanta moça, que fome que eu tinha
Zanzando na praia pra lá e pra cá
(Recitado) Foi aí então que eu arresolvi a comer gilete. Tinha um cumpadre meu lá de Quixeramubim que ganhou um dinheirão comendo gilete na praia de Copacabana. Eu não sei não, mas eu acho que ele comeu tanta, mas tanta, que quando cheguei lá aquela gente toda já estava até com indigestão de tanto ver o cabra comer gilete. Uma vez eu disse assim prum moço que vinha passando: Ô decente, vosmecê não deixa eu comer uma giletezinha pra vosmecê ver?
“Tu não te manca não, ô Pau-de-Arara?”
“Só uma, que eu ainda não comi nadinha hoje”.
“Você enche, hein?”
Aquilo me deixou tão aperreado que se não fosse o amor que eu tinha na minha violinha, eu tinha rebentado ela na cabeça daquele… filho de uma égua!
(Cantado) Puxa vida, não tinha uma vida pior do que a minha
Que vida danada que fome que eu tinha
Mais fome que eu tinha no meu Ceará
Aí eu pegava e cantava e dançava o xaxado
E só conseguia porque no xaxado
A gente só pode mesmo se arrastar
Virgem Santa! A fome era tanta que mais parecia
Que mesmo xaxando meu corpo subia
Igual se tivesse querendo voar.
(Recitado) Às vezes a fome era tanta que volta e meia a gente arrumava uma briguinha pra ver se pegava a bóia lá do xadrez. Êta quentinho bom no estômago! Com perdão da palavra, a gente devolvia tudo depois, que a bóia já vinha estragada. Mas enquanto ela ficava quietinha lá dentro, que felicidade! Não, mas agora as coisas tão melhorando. Tem uma dona lá no Lebron que gosta muito de ver eu comer caco de “vrídrio”. Com isso eu já juntei uns quinhentos merréis. Quando juntar um pouco mais, vou-me embora, volto pro meu Ceará!
(Cantado) Vou voltar para o meu Ceará
Porque lá tenho nome
Aqui não sou nada, sou só Zé-com-fome
Sou só Pau-de-Arara, nem sei mais cantar
Vou picar minha mula
Vou antes que tudo rebente
Porque tô achando que o tempo tá quente
Pior do que anda não pode ficar”.)
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*Chico Ribeiro Neto, jornalista profissional aposentado, trabalhou no Jornal da Bahia, Tribuna da Bahia, sucursal da Manchete em Salvador, sucursal do Jornal do Brasil em Porto Alegre e A Tarde
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