Música Sempre: o Natal à brasileira de Assis Valente

Qual a cara musical do Natal no Brasil? Oitenta e oito anos depois, desde a primeira gravação, em 1933, a festa maior da cristandade tem a sonoridade e a marca de Assis Valente, cantor e compositor baiano, da cidade de Santo Amaro, no Recôncavo Baiano, que compôs a música “Boas Festas”, executada até hoje como uma espécie de hino à moda brasileira para se comemorar a chegada do Natal.

Tão brasileira, que em 1933, um ano depois de ter sido escrita em um quarto de pensão no bairro de Icaraí, no Rio de Janeiro, retratava bem à época e nos dias atuais, o Natal de boa parte dos brasileiros, sem o Papai Noel e os presentes.

Assis Valente se inspirou em um quadro que havia no quatro, retratando uma menina triste, com os sapatinhos sobre a cama, esperando o presente de Natal, e lembrou então dos natais da sua infância, na pobre Santo Amaro dos anos 30, com presépios feitos de peças de barro, árvores de natal de folhas de pitangueiras e a frustração da ausência dos presentes. E essa situação foi transportada para a música, que a despeito da sua sonoridade, aperfeiçoada ao longo dos anos, retrata um Natal triste.

Tocada de diversas formas e estilos, e por vários artistas, atendendo às modificações musicais ao longo das décadas, “Boas Festas” mostra o natal dos socialmente “esquecidos”, uma realidade bem brasileira. Ao se referir, nos primeiros versos, à frustração da criança que vê chegar a noite de Natal, e mantém a esperança de venturas, e por isso mesmo fica feliz a rezar, revela o espírito do Natal, não na pureza da sua essência de cristantade, que foi modificada ao longo dos anos, mas no seu espírito mercadológico, pela figura do Papai Noel e do ato de dar e do receber presentes. E à felicidade, que não vem, é substituída pela frustração pelo presente que não chegou.

“Anoiteceu, o sino gemeu/E a gente ficou feliz a rezar
Papai Noel, vê se você tem/A felicidade pra você me dar
Eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel//
E assim felicidade/Eu pensei que fosse uma brincadeira de papel
Já faz tempo que eu pedi/Mas o meu Papai Noel não vem
Com certeza já morreu/Ou então felicidade/ É brinquedo que não tem”.

* Assis Valente (José de Assis Valente Santo Amaro, BA, 1911-1958) foi um ilustrador e compositor, conhecido por produzir diversos sucessos para Carmen Miranda (1909-1955), imortalizada na música “Brasil Pandeiro. É considerado um pioneiro na música popular do Brasil, com vários sucessos juninos, como “Cai cai balão”, e o primeiro a compor músicas feitas especialmente para o Natal, como “Boas Festas”, ambas em 1933.

Em 1927 mudou-se para o Rio de Janeiro, onde se empregou como protético e conseguiu publicar alguns desenhos em revistas como Shimmy e Fon-Fon. Foi na década de 1930 que compôs os seus primeiros sucessos, sambas interpretados por Carmen Miranda, Orlando Silva e Carlos Galhardo.

“Boas Festas” veio em um momento de depressão, pois Assis Valente passou o carnaval de 1932 sozinho e triste, em Niterói, longe da família e dos amigos. Em seu quarto, em uma pensão em Icaraí, havia a gravura de uma menina de pé, entristecida, e os sapatinhos sobre a cama, esperando o presente. Em dezembro daquele ano, inspirou-se na gravura no quarto e nas lembranças da sua infância pobre em Santo Amaro e compôs “Boas Festas”. Em 1958, atolado em dívidas e deprimido, cometeu suicídio.

**A origem histórica do Papai Noel está diretamente relacionada com São Nicolau de Mira, também chamado de Nicolau Taumaturgo, um bispo cristão que viveu entre os séculos III d.C. e IV d.C. São Nicolau viveu na Ásia Menor (região que corresponde, atualmente, à Turquia) e ficou conhecido por sua generosidade.