O esquecimento e as estátuas de canalhices elogiosas 

Senhora Cecília, a senhora está bem? Quer beber alguma coisa? Um vinho deixaria animada, como sempre; não importa hora, às vezes penso que há mais vinho nas veias do que sangue e pouca água. O médico a aconselhou beber mais água. Recomendou-me a lhe servir água regularmente, especialmente quando estivesse bebendo vinho e foi cuidadoso; […]


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Ana Cristina 14/04/2022 08:00 Artigos

Senhora Cecília, a senhora está bem? Quer beber alguma coisa? Um vinho deixaria animada, como sempre; não importa hora, às vezes penso que há mais vinho nas veias do que sangue e pouca água. O médico a aconselhou beber mais água. Recomendou-me a lhe servir água regularmente, especialmente quando estivesse bebendo vinho e foi cuidadoso; escreveu no caderno, onde faço minhas anotações, não é diário, são coisas que preciso escrever para não desaparecer da memória e também uma forma de escapar da morte.

Certa vez, uma dessas pessoas dos grandes jantares e almoços me confidenciou que não podemos ficar invisíveis, caso quisermos prosseguir na vida, porque a morte é o esquecimento. Por isso, anoto tudo e depois leio, quando vou dormir. Ao acordar sei que estou viva porque me lembro da escrita e faço muita coisa na casa e a morte nunca me assombrou, como aconteceu com Hildebrando.

Lembra de Hildebrando? Morreu porque não acreditou que se morre e se esqueceu de apagar o fogo e torrado ficou em meio aos móveis, as belas cortinas, os castiçais e aquelas janelas que emudeciam os olhares. Suas janelas são bonitas, mas aquelas consumidas pele fogo nunca mais vão ressurgir. Lembra do pintor Lafayette Aguilar? Ganhou fama e muito dinheiro ao expor no salão de pinturas de sempre, as janelas da morada de Castiglioni, aquele belo edifício com o frontispício imponente.

Marquei a página em que o médico escreveu em letra de forma Perrier. “Não se preocupe, na casa tem muitas garrafas, embora os convidados se sirvam à vontade Cecília bebe alguns goles, mas sem entusiasmo, somente para compor a mesa”.

Já passa do meio dia e a senhora nem se move. Pernas abertas, vestido que lhe deixam os seios recebendo sol e a cabeça jogada entre os travesseiros. A senhora combinou com Lafayette ou algum outro pintor para lhe retratar, assim, quase morta. A idéia lhe surgiu de repente ou está sendo difundida nas reuniões sociais que frequenta? No meu mundo cabem muitas coisas e escrevê-las é exaustivo. A madrugada me cobra e o sono também, o fogão, o café da manhã, as louças, sofás e os móveis ficam irritados, se não recebem a devida atenção, mas graças a deus não podem por carta no correio, nem passar e-mails, denunciando minha negligência. Se algum dia, na esperança de nunca acontecer, pousar na casa um robô cuidarei para sempre estar defeituoso. Estou falando robô de verdade, como HAL, de ‘Uma Odisséia no Espaço’, de Kubrick, e não essas tralhas de internet, com a bula escrita em hieróglifo, algumas vêm até sem botão.

A senhora insiste e em ficar prostada na cama, sem dizer uma palavra e eu com uma lista de obrigações a cumprir e ainda correndo o risco de faltar água, acompanhada da desculpa estúpida da companhia de abastecimento, como se fossemos todos tolos e na medida da contemporização da ineficiência, porque não entendemos nada de engenharia, mas sabemos muito bem a merda que é abrir a torneira e ser tomada pela ausência da água. 

Posso lhe sacudir senhora? Bom, se você não responde coloco a ideia de lado. Lembro de haver me esbofeteado quando passei a blusa de seda sem colocá-la no anverso. É isso que se chama psicologia aplicada? Foi a explicação da minha vizinha, na perfeita zombaria. Poderia ter me ensinado, afinal, o aprendizado não cai na cabeça, só chuva, sol e desgraças que nunca esperamos, mas não faltam. Pode até a blusa ficar sem botão, mas as desgraças são resilientes.  

Desculpe-me, mas telefonarei para a doutora e não para o médico, ele parece os livros da biblioteca, envelhecidos, mudos e de duvidosa serventia e quando a senhora recorre a um deles é puro aborrecimento. Eu não sei quem os escreve, se são canalhas, como gosta de dizer, entre a leitura, a baforada de cigarro e a pausa de alguns segundo. Por que estão na estante, se abrigam gente de má índole?  

Doutora, venha depressa, Cecília está imóvel na cama, isto nunca ocorre. Será que vai morrer? Ontem voltou de uma festa bem tarde, sei porque estava fazendo minhas anotações e hoje acordei com o corpo lutando para não me acompanhar. Servi-me de um chá horroroso, como castigo. Nada de café, suco, ou pão. Não desobedeço a ninguém, portanto não aceito queixumes, maus modos e desleixos. A falta é grave. E não é porque estou no mundo e nele cabem muitos erros que posso escolher aqueles a se tornarem acertos e, mais ainda, tomar as circunstâncias com comiseração.

Cecília acorde. Vamos almoçar. O quê? Você está me batendo? Era para jogar uma balde de água na sua cabeça, e curar essa ressaca? Uns tabefes requerem menos esforço. Sinceramente gostei, não é à toa que você é médica de bisturi e injeção, mas, por favor, não queira reduzir esse piano a um pandeiro, aqui se tocam belas melodias e cabem muitas partituras, mas hoje não quero existir, penso já ter feito o suficiente. Vou dar uma pausa, não sou como os místicos e deus. Eles têm obsessão por existir, talvez, por isso, ou pelas mentiras pregadas, não são levados a sério. Há até quem os excomungue, no entanto movem força excessiva e terminam anulando o ardor. Alguns se sentem envergonhados, ao perceberem que o cálculo não termina em vantagens, pelo contrário. Com a constatação de tratar-se de coisa irrisória, ficam envergonhados e pedem uma xícara de chocolate quente; descuidadamente queimam a língua.

Ontem, quando as teclas do corpo podiam soar o ‘Trenzinho Caipira’, e ficaram mudas, sem sequer haver ensaio, não que eu percebesse, Alberto lançou comentários sobre a argumentação. Disse a ele que falamos, muitas vezes, sem argumento, e isto não traz danos ou colocam ilusões na cabeça e no coração de alhures. “As palavras se encarregam de transmitir a verdade e quando escritas ganham um poder fantástico. Aprendemos isso lendo o Pravda, onde se escreve a verdade, anulando toda escolástica. A razão está na verdade e não a verdade na razão e nem na fé, e bem distante do argumentatio. Como são muitas as verdades escritas na verdade e como não dá para decorá-las, o esquecimento as leva às estátuas e estas para as canalhices elogiosas.

Foto:  Estátua de César.1694. Louvre. Paris

*Gerson Brasil – jornalista e escritor
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